O hipotireoidismo é uma condição comum definida pela secreção insuficiente de hormônios tireoidianos que afeta aproximadamente 8% da população adulta.
O primeiro tratamento para o hipotireoidismo foi desenvolvido por volta de 1890 e consistia na administração de extrato dissecado de tireoide animal, contendo contém tiroxina (T4) e triiodotironina (T3). A descoberta das deiodinases, enzimas capazes de converter T4 em T3 nos tecidos alvo, associada às dificuldades na utilização e monitorizaçao dos níveis séricos de T3, com maior incidência de eventos adversos fez com que este fosse cada vez menos empregado no tratamento do hipotireoidismo. Dessa forma, a utilização de T4, em doses suficientes para a normalização dos níveis de TSH, foi definida como o tratamento padrão para o hipotireoidismo.
A maioria dos pacientes consegue o restabelecimento do eutireoidismo clínico e bioquímico, superando as alterações associadas à deficiência dos hormônios tireodianos. No entanto, uma minoria de pacientes segue apresentando sintomas residuais de hipotireoidismo, apesar da normalização do TSH sérico. A diretriz mais recente da American Thyroid Association para o tratamento do hipotireoidismo reconhece que os níveis séricos de T3 podem não ser restaurados em todos os pacientes tratados com T4, porém também ressalta dificuldades técnicas na avaliação do T3, bem como a possível falta de correlação entre os níveis séricos e os níveis celulares do T3, considerando a potencial conversão intracelular de T4 em T3 pela ação da deiodinase tipo 2. Dessa forma, a monitorização dos níveis de T3 sequer é recomendada no acompanhamento dos indivíduos com hipotireoidismo.
Nesse contexto, surgem novos dados, dessa vez obtidos de indivíduos brasileiros, participantes do estudo ELSA-Brasil e publicados na revista JCEM. Foram avaliados 186 participantes que iniciaram tratamento com T4 durante o estudo e 243 indivíduos em tratamento contínuo. O período de acompanhamento foi de 8,2 anos. O início da terapia com T4 resultou em diminuição do TSH, aumento de T4livre e uma redução de 7% nos níveis séricos de T3 livre. Os autores apontam associação com um aumento nos níveis de triglicerídeos e de utilização de medicamentos hipolipemiantes e antidiabéticos (porém esse aumento também foi observado no grupo controle). Durante o acompanhamento, 115 participantes (47,3%) tiveram pelo menos um nível sérico de T4L acima do intervalo de referência de controle e 38 participantes (15,6%) tiveram pelo menos um T3 sérico abaixo do intervalo de referência.
Cabe reforçar que o estudo ELSA-Brasil é um estudo observacional, que busca avaliar fatores associados ao maior risco de eventos cardiovasculares. A avaliação da função tireoidiana foi incluída, considerando a possível associação das disfunções hormonais com eventos cardiovasculares. Os autores do estudo citado anteriormente também não utilizaram os valores de referencia apresentados pelos fabricantes dos exames, mas calcularam um “valor normal”baseado na distribuição dos resultados obtidos.
No Brasil, ainda não dispomos de formulações de T3 com autorização da ANVISA para sua comercialização. Dados de longo prazo sobre o uso de T3 ainda são escassos e existem evidentes preocupações quanto a potenciais efeitos adversos. O tratamento com T4 segue como primeira escolha no hipotiroidismo, porém pacientes em doses otimizadas, com valores laboratoriais ajustados, que persistam sintomáticos podem ser candidatos a terapia combinada. Para isso, o acompanhamento criterioso e especializado é fundamental.